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João Alfredo Lopes Nyegray*
O maior desfile militar da história da China, realizado em setembro de 2025, foi mais do que uma demonstração de poder bélico: foi um ato simbólico de afirmação geopolítica. Ao exibir sua tríade nuclear completa e armamentos de ponta, Pequim enviou mensagens múltiplas ao mundo: de dissuasão militar frente aos Estados Unidos, de liderança política ao lado de aliados estratégicos como Rússia, Índia e Coreia do Norte, e de projeção de uma ordem multipolar.
Este episódio, porém, deve ser analisado à luz das estratégias erráticas e isolacionistas de Donald Trump, que, ao recorrer a políticas tarifárias punitivas e a um unilateralismo crescente, contribui para a erosão da ordem liberal construída após 1945. Como defendem autores como John Ikenberry (2011), a força dos EUA não reside apenas no poder militar, mas na capacidade de estruturar alianças e instituições. Ao abdicar desse papel, Washington abre cada vez mais espaço para alternativas lideradas por Pequim.
O segundo governo Trump consolida um paradigma transacional nas relações internacionais. Tarifas generalizadas, saídas de mecanismos multilaterais e retórica nacionalista enfraquecem a previsibilidade e a confiança que caracterizaram a ordem liberal. Como argumenta Robert Keohane (1984), instituições reduzem incertezas e custos de transação; ao minar essas estruturas, os EUA se isolam.
Além disso, Trump aplica um mercantilismo do século XIX em pleno século XXI, privilegiando ganhos imediatos e unilaterais em detrimento de bens públicos globais, como estabilidade financeira e segurança marítima. O resultado é duplo: parceiros médios (Índia, Turquia, Arábia Saudita, Brasil) buscam maior autonomia estratégica, e rivais (China e Rússia) encontram terreno fértil para expandir sua influência. O isolacionismo de Trump também ecoa a crítica realista de Mearsheimer (2001): ao tentar conter a ascensão da China por meios exclusivamente econômicos, Washington acaba acelerando a formação de blocos rivais.
O desfile militar em Pequim mostrou que a China não depende mais de tecnologia estrangeira e alcançou autossuficiência estratégica. Com drones, mísseis hipersônicos e sistemas antimísseis avançados, Pequim projeta uma capacidade de negação de acesso (A2/AD) no Indo-Pacífico que pode limitar a liberdade de ação americana, sobretudo em Taiwan.
Entretanto a questão não é apenas técnica: falta à China experiência de combate integrada como a dos EUA. Ainda assim, o “
soft balancing” chinês é eficaz. Inspirada em Sun Tzu e na doutrina de “vencer sem lutar”, a estratégia chinesa privilegia a guerra cibernética, a guerra de informação e a construção de alternativas institucionais — da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) à Organização para a Cooperação de Xangai (OCX). Autores como Yan Xuetong (2019) defendem que a China busca combinar poder material com liderança moral alternativa, articulando-se como voz do “Sul Global” contra a hegemonia americana. O desfile, portanto, não é apenas militar: é narrativa, é poder simbólico.
A presença conjunta de Xi Jinping, Vladimir Putin, Narendra Modi e Kim Jong-un no mesmo palco sintetiza a formação de um ecossistema pós-ocidental. A Rússia, mesmo pressionada por sanções e imersa na guerra da Ucrânia, mantém estreita convergência estratégica com a China, sobretudo no campo energético e militar, demonstrando que a lógica de separação entre Moscou e Pequim promovida por Kissinger nos anos 1970 já não encontra paralelo. A Índia, por sua vez, embora preserve vínculos com os Estados Unidos no âmbito do Quad, aproveita as tarifas punitivas impostas por Trump para ampliar sua margem de manobra junto à China, exercendo um hedging estratégico que lhe permite maximizar ganhos sem comprometer a autonomia. Já a Coreia do Norte funciona como peça disruptiva, reforçando a capacidade de Pequim em acionar instrumentos assimétricos de pressão sobre Washington. Esse mosaico heterogêneo, ainda que marcado por contradições internas, confirma o diagnóstico de Amitav Acharya de que vivemos em uma ordem multiplex, menos hierárquica e mais policêntrica, na qual alianças flexíveis substituem os blocos rígidos da Guerra Fria.
Ou seja: o desfile militar da China e a união simbólica de Xi, Putin, Modi e Kim revelam a transição de uma ordem liberal americana para uma ordem multipolar e fragmentada. Trump, ao abdicar de liderar instituições multilaterais e ao adotar políticas erráticas, acelera essa transição. Enquanto os EUA ainda detêm vantagens estruturais — orçamento militar, moeda de reserva, alianças robustas —, a China emerge como player global, capaz de combinar poder militar, autonomia tecnológica e liderança simbólica.
O risco para Washington não está apenas no poderio chinês, mas em seu próprio enfraquecimento como líder confiável. Como diria Joseph Nye (2004), o poder dos EUA sempre foi tanto “hard” quanto “soft”. A perda de legitimidade e previsibilidade pode custar caro, abrindo espaço para que Pequim, Moscou, Nova Délhi e até Pyongyang redesenhem os contornos da geopolítica contemporânea.
*João Alfredo Lopes Nyegray é mestre e doutor em Internacionalização e Estratégia. Especialista em Negócios Internacionais. Advogado, graduado em Relações Internacionais. Professor de Geopolítica, Negócios Internacionais e coordenador do Observatório de Negócios Internacionais da PUCPR. Instagram: @janyegray