João Alfredo Lopes Nyegray*
A crise entre Estados Unidos e Venezuela, que se intensifica com o deslocamento de destróieres e grupos anfíbios norte-americanos para o Caribe e com a retórica da Casa Branca de “usar toda a força” contra Nicolás Maduro, não pode ser lida como um episódio isolado de atrito bilateral. Trata-se de mais um sintoma da fragmentação do sistema internacional, em que o poder se dispersa entre múltiplos polos e onde instituições tradicionais perdem capacidade de administrar crises. O caso venezuelano é revelador tanto do retorno da lógica da coerção militar quanto da incapacidade da América do Sul de se apresentar como ator coeso em meio ao jogo das grandes potências.
Na tradição da teoria da coerção (Schelling, 1966; Pape, 1996), o objetivo não é necessariamente destruir o adversário, mas alterar seu comportamento por meio da ameaça crível de custos intoleráveis. É exatamente isso que se observa no Caribe: os EUA deslocam meios navais de alto poder ofensivo – destróieres Aegis e o
Iwo Jima Amphibious Ready Group – não para lançar de imediato uma invasão em larga escala, mas para aumentar a vulnerabilidade percebida do regime chavista e sinalizar que a conivência com cartéis e redes ilícitas terá custos crescentes. A recompensa de US$ 50 milhões pela captura de Maduro não é apenas um expediente jurídico: é parte da arquitetura de pressão, elevando a narrativa de “narcoterrorismo de Estado” a um patamar comparável à perseguição de Osama Bin Laden.
Do lado de Caracas, a mobilização de 4,5 milhões de milicianos e a retórica de “nenhum império tocará nosso solo sagrado” ilustram o que Robert Jervis (1978) definiu como dilema de segurança: medidas defensivas são interpretadas como ofensivas e geram escaladas recíprocas. A Venezuela, militarmente inferior e com sérias deficiências logísticas, aposta na resiliência política interna e na diplomacia de alianças – evocando Rússia, China e Irã como contrapesos simbólicos e mobilizando a ALBA-TCP como escudo político. Em termos de Barry Buzan e Ole Wæver (2003), temos aqui um complexo de segurança regional: as ameaças são interdependentes, e os atores locais (Venezuela, Colômbia, Caribe) não conseguem dissociar sua segurança das projeções de poder extra-regionais.
A confrontação entre EUA e Venezuela ilustra a erosão da ordem liberal internacional. Nos anos 1990, em plena unipolaridade, Washington teria conduzido operações sob o guarda-chuva da OEA ou da ONU, legitimando suas ações pelo multilateralismo. Hoje, em contrapartida, a lógica é transacional e unilateral: define-se um inimigo (narcotráfico, terrorismo), constrói-se a narrativa de ameaça direta à segurança nacional, e aciona-se o poder militar sem necessidade de mandato coletivo. Isso revela a transição descrita por Hedley Bull em
The Anarchical Society: o sistema internacional oscila entre ordem e anarquia, mas, em tempos de fragmentação, o espaço das regras diminui e cresce o peso da força.
Além disso, vivemos um momento de multipolaridade instável. A Venezuela não é apenas um Estado contestado em termos de legitimidade interna; é também um ponto de conexão com potências revisionistas. Rússia, China e Irã utilizam o apoio a Caracas como forma de desafiar a hegemonia norte-americana no hemisfério ocidental, forçando Washington a abrir mais frentes de contenção. Nesse sentido, a crise venezuelana insere a América do Sul em um tabuleiro de competição global, onde não há espaço para neutralidade plena, mas tampouco condições para alinhamentos coesos.
Se o mundo está fragmentado, a América do Sul mostra-se ainda mais vulnerável. Organismos como a OEA e a UNASUL revelam paralisia diante do impasse. Enquanto a ALBA-TCP condena a presença norte-americana, países pragmáticos evitam se posicionar, e outros se alinham silenciosamente a Washington. Essa dispersão de posturas demonstra a incapacidade regional de atuar como bloco estratégico. O resultado é um vácuo de poder que facilita a entrada de atores externos, transformando a região em palco, e não em ator, do jogo global.
A fragmentação se traduz também em impactos concretos: aumento dos custos logísticos e de seguros na rota caribenha, risco de sanções secundárias contra empresas sul-americanas que mantenham vínculos comerciais com a Venezuela, volatilidade nos preços de petróleo e derivados, além de fluxos migratórios adicionais para países vizinhos. O custo econômico da fragmentação é sentido não apenas em Caracas, mas em toda a região, que passa a operar sob maior incerteza e vulnerabilidade.
A crise entre EUA e Venezuela deve ser compreendida como um microcosmo da fragmentação do sistema internacional. O recurso norte-americano à coerção, a narrativa venezuelana de resistência, a incapacidade da América do Sul de construir consensos e a projeção de potências externas sobre a região evidenciam que estamos em um mundo onde a força prevalece sobre as regras, e onde a multipolaridade não se traduz em governança, mas em competição. Para o Brasil e para a América do Sul, o desafio é não se tornar refém dessa dinâmica: é preciso recuperar capacidade de articulação regional e defender, com firmeza, os princípios de não intervenção e solução pacífica, sob pena de assistir passivamente à transformação do subcontinente em espaço de disputa alheia.
*João Alfredo Lopes Nyegray é mestre e doutor em Internacionalização e Estratégia. Especialista em Negócios Internacionais. Advogado, graduado em Relações Internacionais. Professor de Geopolítica, Negócios Internacionais e coordenador do Observatório de Negócios Internacionais da PUCPR. Instagram: @janyegray