Brasil e a simetria da incerteza
21/08/2025 às 18:23
Por Victor Solla Pereira Silva Jorge, sócio fundador do escritório Jorge Advogados, atuante nas áreas de direito digital, tecnologia e proteção de dados

O Brasil atravessa um momento histórico singular em que as bases do passado jurídico e as promessas do futuro tributário estão igualmente envoltas em incertezas. Se, de um lado, o Supremo Tribunal Federal (STF) promoveu uma inflexão inédita ao relativizar a coisa julgada no julgamento dos Temas 881 e 885, minando a segurança de decisões judiciais definitivas, de outro, a entrada em vigor da reforma tributária desenha um cenário nebuloso e ainda pouco definido para os próximos anos. A soma dessas instabilidades revela uma República que parece não oferecer certezas nem sobre o que já foi decidido, nem sobre o que virá.

Historicamente, a coisa julgada foi concebida como um pilar da segurança jurídica e do devido processo legal. O instituto era celebrado como um marco civilizatório que oferecia previsibilidade e estabilidade. Essa concepção, no entanto, foi profundamente abalada com os Temas 881 e 885, julgados pelo STF em fevereiro de 2023. Ao entender que decisões transitadas em julgado favoráveis ao contribuinte podem ser automaticamente superadas por nova orientação da Corte em controle de constitucionalidade — especialmente no caso de tributos de trato continuado —, o STF promoveu uma ruptura sistêmica. A coisa julgada deixou de ser a “última palavra” para se tornar um ato condicional, sujeito ao humor jurisprudencial e ao dinamismo das decisões constitucionais.

Esse novo cenário compromete diretamente o planejamento jurídico e financeiro de contribuintes e empresas. Passa a existir o risco real de que tributos já considerados indevidos e não pagos em razão de decisão judicial definitiva venham a ser cobrados retroativamente. O passado, até então sólido e encerrado, tornou-se fluido e incerto. O contribuinte perde a previsibilidade, a confiança legítima é abalada, e o Estado, que deveria ser o garantidor da segurança jurídica, torna-se o vetor da instabilidade.

Como se não bastasse a erosão do passado, o Brasil se vê diante de um futuro igualmente incerto com a promulgação da reforma tributária (Emenda Constitucional 132/2023). Embora elogiada por sua ambição modernizadora e por buscar racionalizar a complexidade do sistema tributário nacional, a reforma ainda carece de regulamentação técnica e segurança operacional. São inúmeros os pontos ainda pendentes: a definição das alíquotas da CBS e do IBS, o funcionamento do Comitê Gestor, as regras de transição, o uso e a compensação de créditos acumulados, a gestão dos benefícios fiscais existentes e a própria operacionalização tecnológica da nova sistemática.

A transição da reforma será longa — de 2026 a 2033 —, mas a insegurança já se faz presente. Empresas enfrentam a necessidade de adaptar seus sistemas contábeis, ERPs, notas fiscais e relatórios ao novo modelo, mesmo sem conhecer ainda a totalidade das regras. O cronograma apertado e a ausência de normas claras agravam o risco de falhas, contestações e aumento da judicialização. O Brasil, que já convive com um dos maiores contenciosos tributários do mundo, tende a ver esse quadro se intensificar à medida que as regras forem implementadas sem a devida maturação normativa.

Outro ponto de incerteza reside na possibilidade de aumento da carga tributária, especialmente para setores como serviços e agronegócio. Estimativas de entidades como a Fecomercio e a CNI apontam que determinadas empresas poderão enfrentar um aumento real de carga de até 96%, o que gera apreensão no mercado, freia investimentos e compromete a competitividade nacional. Além disso, a coexistência entre o sistema antigo e o novo durante a fase de transição tende a gerar confusão e conflitos federativos, com Estados e Municípios disputando competências e receitas.

Assim, o Brasil vive uma simetria perversa: o passado, antes blindado pela coisa julgada, torna-se passível de reinterpretação e cobrança retroativa; o futuro, antes idealizado como horizonte de racionalidade e eficiência, apresenta-se obscuro, imprevisível e regulatoriamente fragmentado. Em ambos os eixos temporais, o contribuinte se vê exposto à insegurança jurídica. Por mais absurdo que pareça, hoje, o passado é instável, porque pode ser reaberto a qualquer tempo por decisões do STF; o futuro é inseguro porque não oferece respostas definitivas sobre as regras que deverão ser seguidas, tampouco sobre os custos de sua implementação.

Essa conjuntura compromete a própria lógica do planejamento empresarial no Brasil. Como investir, crescer ou inovar em um ambiente onde a decisão transitada em julgado de ontem pode ser anulada hoje, e onde a tributação de amanhã ainda não está claramente delineada? A estratégia jurídica e tributária, que tradicionalmente se ancorava na estabilidade institucional, agora exige resiliência e constante revisão. Em vez de operar com segurança, empresários e advogados passam a operar com contingência. A previsibilidade dá lugar à gestão do risco.

A República brasileira, nesse contexto, assume um contorno kafkiano. O tempo jurídico se torna não-linear, e a relação entre Estado e contribuinte passa a ser regida não por normas estáveis e aplicáveis de forma objetiva, mas por interpretações voláteis e por projetos regulatórios ainda em gestação. A consequência prática é o aumento do custo Brasil, a retração dos investimentos e a descrença no próprio sistema de Justiça.

É preciso reconhecer que a supremacia da Constituição, a eficiência da tributação e a evolução institucional são princípios legítimos e desejáveis. No entanto, quando essas forças se impõem em detrimento da confiança, da estabilidade e do devido processo legal, corremos o risco de desfigurar os alicerces que sustentam a convivência jurídica em um Estado Democrático de Direito. O desafio do momento não é apenas implementar uma reforma ou reinterpretar institutos clássicos. O desafio é reconstruir um pacto de previsibilidade entre o Estado e o contribuinte, sob pena de transformar o Brasil em uma República utópica onde o passado pode ser reescrito e o futuro permanece dependendo do passado.
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