Vovô Vitorino: o sonho de um homem que mudou a comunidade do Tatuquara
16/08/2025 às 01:43
ONG criada em memória de Vitorino Xavier oferece capacitação e educação profissionalizante

No coração do bairro Tatuquara, em Curitiba (PR), um sonho plantado há mais de 30 anos por Vitorino Xavier floresceu e hoje é referência em transformação social: a Associação de Proteção à Infância Vovô Vitorino. Criada oficialmente em 1994 por Maria Julia Xavier, filha de Vitorino, a organização nasceu do gesto simples e generoso de seu pai, que começou a conversar e orientar crianças enquanto construía a casa da filha. Após seu falecimento em um trágico acidente de carro, a família decidiu dar continuidade ao seu legado, transformando a dor em ação comunitária.

“O Vitorino fazia comida para ele e as crianças acabavam se aproximando, atraídas pelo cheiro. Ele acolhia cada uma naquele terreno ainda em construção — sem esgoto, sem asfalto, aberto, sem muros. Contava histórias, dava conselhos, dividia a marmita. Foi assim que virou o ‘Vô Batuta’”. Quando ele faleceu, essas crianças perguntavam por ele. Foi quando percebemos que tínhamos que continuar aquele trabalho”, relata Livercina Xavier, filha de Vitorino e presidente da Associação.

Livercina relembra que o início da ONG foi marcado por muitas dificuldades no atendimento à comunidade do bairro e iniciou oferecendo educação infantil, depois expandiu para adolescentes e, hoje, atende jovens e adultos que buscam qualificação profissional e mudança de vida. “A gente atendia de forma meio aleatória, sem experiência”, contou. Com o tempo, surgiu a necessidade de buscar apoio institucional. “Aí a gente começou a procurar o poder público para formalizar as atividades”, diz. Foi então que receberam o apoio técnico da Secretaria de Educação para estruturar o atendimento dentro das exigências legais. 

Apesar do avanço, os desafios financeiros persistiam. “A gente continuou com a educação infantil, atendendo todas as exigências da vigilância sanitária, mas ainda com uma restrição muito grande de recursos”, explicou. “Como nós não tínhamos recurso, a gente procurava ser criativo — fazer uma sopa de batata com carne moída, bem temperada”, conta Livercina. A situação começou a melhorar com uma parceria importante: “Quando conseguimos a parceria com a La Violetera, isso já facilitou nossa vida. E, na sequência, um posto de gasolina também ajudou, dizendo: ‘A gente dá gasolina para vocês buscarem a comida”, lembra. 

Projetos que moldam o futuro

Um dos marcos da trajetória da organização foi o lançamento do Projeto Reciclar é Viver, em 2006. A iniciativa tem como objetivo a troca de resíduos recicláveis por alimentos básicos, aliando educação ambiental e segurança alimentar. “Criamos uma moeda de troca. O reciclável era valorizado e o alimento vendido por preços abaixo do mercado. Isso criou um ciclo de responsabilidade social e ecológica”, explica Livercina.

Outro destaque é o Projeto Despertar para a Autonomia, realizado em parceria com a Petrobras, por meio do Programa Petrobras Socioambiental. A iniciativa está em sua segunda fase e oferece cursos profissionalizantes gratuitos nas regiões de Tatuquara e Araucária (PR). Só na primeira edição, 520 pessoas foram capacitadas e a meta agora é atingir 1.500 participantes até 2027. As formações atendem demandas reais da comunidade, com foco em empregabilidade e protagonismo, com cursos que incluem empilhadeira, eletricista, construção civil, entre outros. 

“Muitas vidas foram salvas através do nosso trabalho. Jovens que viviam na rua, que fizeram vários cursos, conseguiram emprego. A gente tem casos excepcionais de jovens que passaram por aqui. Hoje são pessoas que fizeram curso superior, pessoas que trabalham em grandes empresas, pessoas que trabalham no poder público em cargos de chefia. Então, foram jovens que passaram por aqui e que têm toda uma história com o Vovô Vitorino. E o mais importante de tudo isso é que esses jovens saem da comunidade, mas voltam, querem saber como está o Vovô Vitorino, como está a associação. Isso é muito bacana”, explica Maria Júlia Xavier, também filha do Vitorino e coordenadora de projetos da organização. 

Mudança de rumo 

Durante a pandemia de Covid-19, quando as atividades presenciais foram interrompidas, a entidade não cruzou os braços. Distribuiu mais de 20 mil cestas básicas, kits de higiene e gás de cozinha a mais de 3 mil famílias. “Ficamos dois anos rodando comunidades. Deus protegeu nossos voluntários, e conseguimos acolher quem mais precisava naquele momento difícil”, relembra Maria Julia.

Neste período, a Associação também precisou interromper suas atividades voltadas à educação infantil — uma pausa que acabou se tornando definitiva. Segundo a presidente da Vovô Vitorino, essa decisão foi tomada após uma análise do cenário local. “A gente parou com a educação infantil e depois não retornou, porque a gente percebeu que o poder público já estava dando conta dessa demanda”, explica Livercina.

Após isso, a organização passou a focar na profissionalização da comunidade, em atenção constante às mudanças na comunidade é, segundo ela, um dos fatores que garantem o sucesso das ações desenvolvidas. “Nós tivemos sempre essa preocupação de estar avaliando a conjuntura do momento. Por isso que os nossos projetos acabam tendo uma boa adesão, porque a gente procura vir sempre ao encontro das necessidades da comunidade”, destaca.

Olhar para frente: autonomia como legado

Com mais de três décadas de história, a Associação Vovô Vitorino tem um legado consolidado e planos sólidos para o futuro. “Acho que o grande legado que o Vovô Vitorino deixa para a comunidade é essa questão de as pessoas se despertarem para um ideal: que todos os jovens tenham oportunidade, que todos os negros tenham oportunidade. Que todos os jovens em situação de vulnerabilidade tenham a mesma oportunidade que uma pessoa com maior poder aquisitivo. Que todo jovem tenha mais oportunidade de aprender, de crescer, de ser alguém, de ser um cidadão e de ter um futuro brilhante pela frente”, afirma Maria Júlia.

Já para Livercina, o futuro da organização depende de manter viva sua essência: responder às demandas reais da comunidade. Entre os principais desafios, ela destaca a necessidade urgente de um espaço maior, já que a estrutura atual é limitada e impede a expansão dos projetos. “Infelizmente, não temos estrutura física suficiente para atender a demanda. Esse é um desafio antigo. Já tentamos conseguir algum espaço com o poder público, mas não foi possível. A gente foi tentando ampliar, compramos mais um lote ao lado, mas mesmo assim não supre a necessidade”, comenta.

Hoje, sustentada por parcerias, doações, eventos e bazares, a Vovô Vitorino é sinônimo de resistência, acolhimento e transformação. Para mais informações e doações, acesse www.vovovitorino.org.br.
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