
por Sérgio Odilon Javorski Filho
O que é, que é? Um preto correndo na Zona Sul de São Paulo às 22:35?
Se o leitor imaginou um assaltante em fuga depois de ter comedido um crime com violência ou grave ameaça contra um branco, pensou igual ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida. Sete minutos entre a saída do trabalho e o tiro na cabeça que ceifou a vida do rapaz de 26 anos, marceneiro, casado, com uma vida inteira pela frente, ou para correr entre o serviço e último ônibus da noite para chegar em casa, mal dormir, novamente acordar e fazer o mesmo durante 35 anos, ou para ser suspeito número um do Estado, implacavelmente controlado e perseguido pela polícia, cujos integrantes, em sua maioria, nasceram no mesmo berço de madeira podre, em uma vila qualquer sem saneamento básico.
No Brasil, bandido tem cor e provém de classe social marginalizada. Quando corre, está fugindo. Se caminha, está seguindo. Neste país, preto não tem um segundo de sossego. O cárcere o persegue. É sinal de problema, sinônimo de perigo, risco à vida ou à integridade física. Ou produz ininterruptamente, como a mulher negra, surda, mantida há mais de 40 anos em trabalho análogo à condição de escravo, ou “evolui” para o modo serviçal, labora por menos do que necessita para subsistir, ou está nas escolas/universidades tomando as vagas de um branco, ou na cadeia por insubordinação. Livre, com emprego formal digno e ainda por cima correndo altas horas da noite em bairro nobre, não tem conversa, é tiro na cabeça. Se não era o que devia ser, tranquilo, foi só um “erro de avaliação”. Fiança baixa, policial em casa, abafa o caso.
Para o Direito Penal da prática, o homicídio é doloso não pela análise da consciência e vontade da conduta, mas pela cor de pele. Branco matou, crime culposo. Errou, normal! Qual outro da mesma raça não erraria no lugar dele? Preto matou, é flagrante, enquadro, tapa e cusparada na cara, chute no genital. Crime doloso, com qualificadora, agravante, majorante, revoltante.
O sistema foi ardiloso. Mediante persistente manipulação, recrutou as próprias vítimas, vestiu-as com uniformes e deu-lhes armas, transformou suas mentes, para que, ao se olharem no espelho, esquecessem de sua verdadeira identidade e acreditassem na ilusão de pertencimento a uma classe que jamais integrarão.
Todos os dias, o preto sai para uma guerra. Seu suor mal paga as contas, a pigmentação da pele torna sua vida descartável. Se correr, é ladrão. As valas estão cheias deles, anônimos, indigentes. O preto é suspeito eterno, do nascimento ao falecimento. Quem mandou ser assim, desse jeito, com esta forma, neste frasco. Fora a Coca-Cola e o petróleo, o preto é sinônimo de ruim, mal, prejudicial. É assim com a “ovelha negra” da família ou quando a “coisa tá preta”. Tem, ainda, o “mercado negro”, o “serviço de preto”, a “magia negra”, o “samba do crioulo doido”, as “tuas negas”, a “cor do pecado” e o “cabelo ruim”.
O sistema não tem escrúpulos e faria qualquer coisa para implementar sua dominação, acredite, até mesmo branquear a pele e colocar lentes azuis no Filho de Deus, para destronar os legítimos herdeiros da coroa. A partir de então, a cada erro de avaliação, um preto no caixão.