
Foto de Nelson Jolivet na Unsplash
[Uma crônica de expiação]
por Luiz Felipe Leprevost
Madrugada. Manto espesso de névoa fria e úmida. A umidade escorre pelas paredes, infiltra-se nos poros dos tijolos, penetra o concreto. Insônia. Mais uma vez. O sono me abandona com a mesma frieza com que a noite me observa. A noite espera algo de mim? Sempre espera. Em troca da paz, exige que eu escreva. Uma ideia gira, insistente, feito animal trancado dentro de mim. Abro meu caderno e começo a inventar:
o ursinho de pelúcia da irmã de alguém. Imagino com nitidez: rosto inexpressivo, olhos de vidro parados no tempo, a pelúcia macia sob os dedos. Esse alguém arranca os pêlos do ursinho, um a um, com uma obsessão ritualística. Por quê? Esse alguém guardou segredo sobre sua maldade a vida toda. Nunca se desculpou, mesmo ante o choro convulso da irmãzinha de quatro anos. Esse alguém se levanta. Precisa sair da casa onde está. Agora ambos adultos, mas a irmã já falecida há alguns anos. Esse alguém desce do bairro em direção ao centro. Vem por ruas frias e estreitas, envoltas em névoa. Asfalto coberto por uma bruma rasteira. Postes brilham como estrelas desabadas que nunca mais vão subir para o céu. Os passos desse alguém soam altos, solenes, quebram o silêncio como vidro. Chega ao Largo da Ordem, completamente deserto. Desce até a rua São Francisco. Ali, correntes das Iluminações de Rimbaud se arrastam pelos paralelepípedos. Um latido corta a distância. Não. Um uivo. Lobisomem ou só um cachorro? Alarmes disparam, parecem suplicar de algum lugar, como desesperadas crianças perdidas. O vento carrega papéis velhos, pequeninos fantasmas, que dançam no escuro. E então esse alguém vê. A mulher alta e esguia surge devagar, saindo de dentro da névoa. Usa um sobretudo preto e um chapéu de aba larga que encobre parcialmente o rosto. Os cabelos ondulam como fumaça. Os olhos dela nos olhos dele. Ela sabe. Ele entende que ela sabe. O ursinho. Sim, a irmã. O passado inteiro aberto novamente por uma única troca de olhares. E então esse alguém se vê aos sete anos sentado no chão, o brinquedo mutilado ao lado, a culpa nas mãos pequenas e peludas com uma espécie de luva da pelúcia arrancada do ursinho. A mulher sorri um riso pequeno. Ele chora. Finalmente, vai dizer: “desculpa.” A noite agora parece menos fria. Menos inimiga. Ela, talvez, tenha lhe oferecido o que ele nem sabia que precisava. Redenção.
“Você não vem dormir?” Tomo um susto. É minha esposa que levantou para buscar água na cozinha. Calço a pantufa. Está frio demais. Antes de apagar a luz do abajur, encontro um fio de pelúcia preso entre as páginas. Fecho o caderno. E vou com a esposa para o quarto.