
por Sérgio Odilon Javorski Filho
O Brasil perdeu a graça. A seleção que fez o país ficar conhecido nos quatro cantos no mundo, desde o 7 a 1 para a Alemanha, não mais bota medo em adversário algum. O rock nacional dos anos 80, revolucionário e intransigente, aposentou as guitarras. As melodias atuais deixaram de incentivar a leitura, a arte, a expressão do sentimento. A insignificância musical de agora promove a objetificação da mulher, a partir de letras sexualizadas de baixíssimo calão. Ao confundir escrutínio com escroto, o parlamento tornou-se trincheira de debates medíocres e de decisões contrárias ao bem comum do povo. Décadas sem produzir cidadãos qualificados também atingiram o traço mais notório do brasileiro: a comédia. O padrão dos risos caiu sobremaneira quando as piadas deixaram de divertir e passaram a desqualificar, humilhar e desmerecer as diferenças humanas que tornam o mundo tão incrivelmente maravilhoso.
No Holocausto, foram vitimadas seis milhões de pessoas entre judeus, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais e opositores políticos.
Shoah deixou um mar insecável de lágrimas no deserto da insensibilidade humana. A escravidão persistiu mesmo depois da promulgação da Lei Áurea. Milhões de negros foram sequestrados de suas terras e viraram escravos mar afora, muitos servidos de alimento para tubarões. Cada novo dia reflete a luta persistente dos deficientes físicos e dos portadores de doenças incuráveis em busca de reconhecimento e dignidade.
A piada não pode ter censura, assim como não deve censurar, sequer revestida de brincadeira, a imagem de perfeição de cada um tem de si mesmo. Para o cego, o brilho está em imaginar as cores. Para o portador de doença incurável, a missão está em não deixar mais ninguém sofrer o contágio. Para os judeus, a dignidade do recomeço e a memória respeitosa maximamente dedicada aos covardemente sacrificados.
Pior do que quem conta estas piadas é quem ri delas e quem as defendem. Se o comediante perdeu o tom, o público perdeu a humanidade. O pai rindo da piada do negro incentiva o filho a ser um futuro racista, mesmo que “de brincadeirinha”. A mãe que aplaude a piada de agressão às mulheres, ri, sem se dar conta das agressões que já sofreu ou eventualmente sofrerá. Este tipo de “comédia” dessensibiliza o receptor, que passa a replicar o que escutou sob o amparo da excludente da comédia, até que o crime não mais se consuma porque antes de ser praticado deu-se uma “boa e alta risada”.
Neste cenário, as pessoas ofendidas sentem-se ainda mais defenestradas, abusadas, açoitadas, revitimizadas, riem para não chorar sobre a lápide de dores lancinantes do chicote cortando a carne, do ar envenenado alcançando os pulmões, do resultado do exame positivo da doença sem cura.
Enquanto, para uns, trata-se de liberdade de expressão, para outros, a forma com que os temas foram abordados pelo comediante alcançaram o campo da lei penal e, por isso, merecem punição proporcional às ofensas.
Tecnicamente, não é fácil extrair o indispensável dolo na conduta do humorista durante o show analisado. A vontade e a intenção de praticar os crimes pelos quais foi condenando não ficou demonstrada, sem deixar relevante dúvida, a qual, no Direito Penal, deve levar à absolvição, segundo o princípio
in dubio pro reo.
O tema reivindica urgente e qualificado debate entre os setores representativos da sociedade e, ao que tudo indica, redundará na edição de dispositivo legal que normatize expressamente a matéria, diante de toda a sua importância histórico-jurídica, em adaptação aos reclames da sociedade pós-contemporânea. O primeiro passo foi dado com a condenação inaugural, ainda que em primeira instância.
No mais, a melhor comédia continuará sendo aquela que conquista o riso, sem extraí-lo a fórceps. Enquanto os piadistas não entenderem de dor, por favor, chega de humor!