O armazém
19/05/2025 às 05:30
Foto de Chad Stembridge na Unsplash
por Luiz Felipe Leprevost

Cada coisa que me acontece. Precisei ir até Campo Largo dia desses. Retornando pela estrada velha, já livre dos afazeres, entrei num armazém na região da Colônia Rebouças. 
Era um desses lugares mais ruína que lugar. A luz do teto pendia mole, quase sem iluminar. Prateleiras quase vazias, produtos antigos que não são mais fabricados. Escassez geral. Cheiro de coisa guardada. Silêncio grosso. 
Atrás do balcão, uma idosa tão carimbada pelo tempo que dava aflição olhar. Rosto cheio de rugas mastigando sabe-se lá que passado. Cada linha de ruga parecia esconder um segredo que a boca desde há muito não podia soltar.
“Boa tarde, uma cerveja preta, por gentileza”, pedi, com uma vontade de amargar a alma e talvez acordar alguma coisa por dentro que até adentrar o recinto eu não parecia desejar.
A anciã sumiu um segundo atrás da cortina desbotada. Sem que eu a pudesse ver abrir a tampa ou mesmo colocar a garrafa no balcão, como seria o normal, voltou com o copo cheio. A cerveja parecia ter se formado ali, na hora. Escura e viva, espumava como se do fundo de alguma lembrança esquecida agora reanimada. 
Levantei os olhos e vi um espelho na parede, que até então tinha passado desapercebido. Ele não refletia o que estava ali — mostrava, de um jeito meio difuso, um armazém novinho, claro e limpo. No reflexo, juro, eu era outro também, mais jovem, magro, o rosto solar. E a anciã era uma menina de quatorze anos, no máximo, os mesmos olhos, só que acesos.
“Lembra de mim?”, a pergunta dela foi tragada pelas moscas que zumbiam no ar parado.
Eu não sabia o que responder. Tentei puxar pelo nome de alguém da família, mas nem por parte de mãe nem por parte de pai me ocorreu alguém. Passeio a mão limpando devagar os farelos da toalha de plástico com flores mortas.
“Uma menina… anos atrás… um coração que batia forte… dava vontade de acreditar no futuro só de ver”, a voz dela tremia. “Não me reconhece?”, insistiu, franzindo a testa. E, com a voz ainda mais baixa: “realmente, nunca mais, querido... ninguém soube de mim.”
O ar ficou mais pesado. O armazém parecia respirava com dificuldade. Garrafas, o copo, o espelho, tudo era deslocado. Nitidamente (não sei se é palavra), concretamente (não sei se é a palavra) a idosa e a menina eram a mesma e (não sei como afirmar essa constatação) não viviam no mesmo tempo. A menina tinha ficado presa ali, num tempo que não andava. O armazém guardava a menina que o tempo esqueceu de levar embora.
Dei mais um gole na cerveja e saí, sem nada dizer. Do lado de fora, o mundo seguia, esperando alguém lembrar.
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