A ascensão estratégica do Ártico e a disputa pela Groenlândia
06/05/2025 às 13:22
Foto de LOGAN WEAVER | @LGNWVR na Uns
Barbara Kammers*
Luigi Dalarme**
João Alfredo Lopes Nyegray***

Tradicionalmente percebido como uma zona remota, congelada e inóspita, o Ártico tem emergido nas últimas décadas como um dos espaços geoestratégicos mais disputados do planeta. O acelerado derretimento do gelo polar, impulsionado pelas mudanças climáticas, não apenas revela novas rotas marítimas que desafiam os tradicionais corredores comerciais – como o Canal de Suez e o Estreito de Malaca –, mas também expõe reservas naturais de incalculável valor estratégico. De acordo com estimativas da U.S. Geological Survey, a plataforma continental do Ártico pode conter cerca de 30% do gás natural ainda não descoberto no mundo, 13% das reservas de petróleo não identificadas e aproximadamente 20% da água doce do planeta – recursos que outrora estavam inacessíveis sob o permafrost e o gelo eterno.
Do ponto de vista da geopolítica clássica, o Ártico adquire centralidade na lógica do poder territorial. Halford Mackinder, ao desenvolver a Teoria do Heartland, já alertava para a importância dos espaços interiores continentais no controle do poder global. Em uma releitura contemporânea, autores como Saul Cohen apontam que o Ártico passou a compor um “eixo geoestratégico periférico”, cuja importância se acentua na medida em que o controle do acesso aos recursos e às rotas transárticas se torna um ativo de poder.
Nesse cenário, a Groenlândia – uma das maiores ilhas do mundo, rica em minerais estratégicos e localizada entre o Atlântico Norte e o Oceano Glacial Ártico – emerge como um território geopolítico de valor incomensurável. Sua posição entre os Estados Unidos e a Rússia a coloca como uma peça-chave no tabuleiro da segurança e da projeção de poder militar. A presença da base aérea de Thule, operada pelos EUA desde a Guerra Fria, reforça a função da ilha como posto avançado de defesa, vigilância e monitoramento aeroespacial.
Não por acaso, os Estados Unidos tentaram formalizar a aquisição da Groenlândia ao menos três vezes: em 1946, no contexto da consolidação da OTAN, em 2019, sob o primeiro governo de Donald Trump – e agora mais uma vez. Ambas as propostas foram sumariamente rejeitadas pela Dinamarca, que mantém a soberania formal sobre o território, ainda que a Groenlândia goze de elevado grau de autonomia desde 2009. A proposta de Trump, embora alvo de escárnio internacional, revela uma racionalidade geoestratégica nítida: assegurar o controle sobre reservas de petróleo, gás, urânio, ferro, terras raras e diamantes, fundamentais para a soberania energética e a competitividade tecnológica norte-americana – elementos centrais em sua política de reindustrialização e repatriação de cadeias produtivas.
O discurso de Trump insere-se na lógica da geoeconomia, termo cunhado por Edward Luttwak, em que as disputas entre Estados se travam menos por meio da força militar direta e mais por mecanismos econômicos, tecnológicos e comerciais. Controlar a Groenlândia implicaria não apenas em reforçar a posição militar dos EUA no Atlântico Norte e no Ártico, mas também criar barreiras estratégicas à expansão da China e da Rússia, cujos interesses na região são cada vez mais explícitos – inclusive com iniciativas de investimentos em infraestrutura portuária e pesquisa polar por parte de Pequim.
Apesar do Conselho do Ártico, criado em 1996, buscar promover a cooperação e o desenvolvimento sustentável entre os países árticos (incluindo Canadá, Rússia, EUA, Noruega, Dinamarca, Suécia, Finlândia e Islândia), sua atuação tem sido limitada diante da ausência de mecanismos vinculantes e da crescente rivalidade entre seus membros. O enfraquecimento desse fórum – intensificado pela suspensão das atividades conjuntas com a Rússia após a invasão da Ucrânia – abre espaço para ações unilaterais que ameaçam a estabilidade regional.
Assim, o degelo do Ártico não representa apenas uma transformação ecológica: ele reconfigura os centros de poder, amplia a fronteira energética global e tensiona a governança internacional. A máxima promovida por diplomatas nórdicos nas últimas décadas, "High North, Low Tension", corre o risco de se converter em "High North, High Tension", à medida que interesses estratégicos, econômicos e militares se sobrepõem à cooperação multilateral.
Nesse contexto, a disputa pelo Ártico ilustra de forma contundente o agravamento das tensões geopolíticas em um mundo marcado por crescente fragmentação e erosão das estruturas multilaterais de governança. À medida que os interesses estratégicos das grandes potências colidem em regiões até então periféricas, evidencia-se uma dinâmica internacional cada vez mais centrada na lógica do poder bruto e da competição por recursos escassos. O avanço de nacionalismos econômicos, o recrudescimento de políticas unilaterais e o declínio da confiança em instituições globais como a ONU e a OMC sinalizam uma transição sistêmica, em que as normas internacionais cederiam espaço a disputas de esfera regionalizadas e baseadas em correlações assimétricas de força. O Ártico, portanto, não é apenas um novo campo de exploração material, mas um microcosmo das transformações que atravessam a ordem global contemporânea — uma ordem em que o equilíbrio instável entre cooperação e conflito tende a se inclinar perigosamente para o segundo polo, sobretudo em tempos de crises climáticas, energéticas e institucionais simultâneas.
*Barbara Kammers é estudante do curso de Negócios Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e membro do Observatório de Negócios Internacionais da PUCPR.
**Luigi Dalarme é estudante do curso de Negócios Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e membro do Observatório de Negócios Internacionais da PUCPR.
***João Alfredo Lopes Nyegray é mestre e doutor em Internacionalização e Estratégia. Especialista em Negócios Internacionais. Advogado, graduado em Relações Internacionais. Professor de Negócios Internacionais e Geopolítica da PUCPR e de Relações Internacionais da FAE. Instagram: @janyegray
 
 
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