É da vida que se faz a vida
[notas sobre o processo criativo da ficção]
Peço uma xícara de chá e sento para escrever novamente. Faço uma anotação ou outra, meio distraidamente (a velha mania de anotar frases). Num primeiro momento, escrever é parecido com falar sozinho. Depois, vozes começam a nos fazer companhia, a falar conosco.
Com discrição, observo as pessoas, quero saber o que vai anotado nas folhas da vida antes de registrar, seja como for, no meu caderno. Mas, por exemplo, como codificar em literatura o namorado que, na porta do Café, abraça a namorada por trás, pois que é um adeus e o adeus parece ser um pouco menos difícil de ser dado assim do que olho no olho? Um amor impossível, ao que tudo indica.
E assim, as personagens vão surgindo por fragmentos. De repente um diálogo levanta uma voz com um pouco menos fantasma, com mais de carne. De repente, dessa figura surge um pensamento. E, por meio desse pensamento, entrevejo sua consciência.
Então começo a procurar características dessa personagem. Olho, talvez, para suas mãos: inchada, esquelética? Vejo sua perna, há varizes nela. Uma sobrancelha espessa me chama atenção. Passo a saber do corpo, propriamente. Talvez isso me carregue para a necessidade de apresentar qualquer coisa que tem a ver com sexo que essa personagem faz ou não.
Ou o corpo me levará também para sua alimentação: o que o personagem come, onde come, quando come e, até mesmo, por que come o que come. Eventuais descrições do tipo de comida forte e pesada, algo como os cheiros de uma buchada de bode, com um finalzinho singular para o paladar. Ou saladas frugais. Ou o velho problema com o álcool. Exemplos apenas. Mas tudo isso conta, tudo isso narra, não é?
As relações entre os personagens movem ou são movidas pelas ações, as ações encaminham o enredo. Nada disso é assim tão bem organizado pecinha por pecinha, o que é pari e passu ao mesmo tempo é junto e misturado.
As personagens não serão de jeito nenhum marionetes do escritor. Quero dizer, o autor está no controle ao mesmo tempo que não está. Sou capaz de afirmar que, quanto mais a narrativa vai ganhando força e autonomia, quanto mais vai como que se escrevendo por si, tomada pelo espírito criador, menos o autor interferirá, ela já estará atuando como canal de uma força criadora que, no final das contas, está dentro dele mesmo e que resulta num grande exercício de alteridades.
Sempre é da vida que se faz a vida, ou seja, a literatura.
por Luiz Felipe Leprevost